A enorme sala da recepção do prédio de condicionamento humano, apesar do intenso calor do verão, estava fria e era iluminada apenas pela luz baixa de lâmpadas dispersas pelo teto. O alarme de aviso soara forte. O contador digital adicionara mais duzentos indivíduos. Naquele exato momento, um novo grupo de homens e mulheres padronizados acabara de ser criado. Levariam apenas algumas horas para tornarem-se fetos, e meses até que pudessem desempenhar cada um a sua respectiva função. Tornariam-se indivíduos com comportamentos indesejáveis desligados.
Ao passo que um novo grupo acabara de ser criado, outro estava pronto para o início da aplicação do método de condicionamento. A retirada dos indivíduos das cápsulas era seguida por um curto processo de programação mental e, posteriormente, eram encaminhados às famílias que os adquiriram.
Com o passar das gerações, a reprodução humana passara a depender exclusivamente das máquinas. Até mesmo aqueles que comandavam eram indivíduos pré-programados.
A imensa porta a sua frente não lhe parecera um obstáculo. Para abrí-la não era necessário sequer um movimento, devido a forma avançada de identificação biométrica. A jovem, focando o olhar para o receptor, teve a íris reconhecida e a passagem liberada.
Por detrás da porta de ferro cada indivíduo fiscalizava uma determinada cápsula. Eirene dirigiu-se até a sua posição. Após horas de trabalho no imenso saguão, ela seguiu o rotineiro percurso até o alojamento. Antes de entrar em seu quarto algo chamou-lhe a atenção. Com mãos e pés amarrados, um sujeito, pressionado contra a parede afirmava aos três guardas que o espancavam que era preciso acordar para uma realidade maior. O ambiente estava vazio. Apenas Eirene observava a cena. O homem pronunciara outros coisas que não puderam ser compreendidas pela jovem. Ela entrara rapidamente em seu aposento.
A noite fora tortuosa, a jovem tentou incessantemente entender o que ocorrera. Ela já o conhecia? Qual era a intenção do sujeito com aquela afirmação? Eirene ainda não havia percebido, mas pela primeira vez seu instinto questionador fora acionado.
Em mais um dia de trabalho a ser cumprido, a jovem, devido ao cansaço da noite conflituosa que passou, apoiou a sua mão sobre a máquina que aquecia as cápsulas. Naquele instante, ela passara a ter um sentimento desconhecido, a pele queimava e uma sensação desesperadora a envolveu. Um líquido escorrera de seus olhos e, imediatamente, ela depositara a mão sobre a face para sentir o fluído que escorria do seu olhar.
Durante todo o seu turno, questionamentos sobre o que ocorrera naquela manhã predominaram em sua mente . Uma necessidade de analisar o que estava a sua volta surgiu e passou a observar minuciosamente todos os seus companheiros de trabalho. Algo que antes passava-lhe despercebido, agora chamáva-lhe a atenção. A uniformização física e psicológica de todos que a rodeavam passaram a fazer-lhe mal. Não havia diversidade. O anseio de ser diferente de todos aqueles predominava.
O sistema vigente não era falho. Nada passava despercebido. Os comportamentos eram detalhadamente observados e controlados. A mudança que ocorrera com Eirene já fora detectada pela central de comando. Algum momento do processo de programação mental da jovem não ocorrera perfeitamente. Era preciso desligá-la.
Eirene refletira sobre a sua rotina de trabalho. E definiu, não só a sua existência, mas a de todos, como muito previsível. Todos gostavam das mesmas coisas, acordavam e dormiam no mesmo horário.
Ao finalizar o seu dia de trabalho, a jovem sentiu curiosade de conhecer os lugares nos quais ela era proibida de entrar. Sendo este, um novo sentimento que surgira, e que, até então era desconhecido. Dirigiu-se a uma enorme sala do prédio, a qual, ela e todos os seus companheiros de trabalho foram programados para não acessá-la.
O ambiente pouco iluminado abrigava um grande acervo de livros. Um deles chamou a sua atenção, estava isolado dos outros, possuía uma cor chamativa. Eirene aproximou-se. O título era: sensações e percepções do ser humano. Ao tocar na capa da obra, um alarme de emergência soou na central de comando. O grande telão que até então exibia as imagens do processo de produção, passou a exibir a imagem da jovem absorvendo tudo o que lia no livro.
As lacunas sobre seus questionamentos passaram a ser preenchidas. No transcorrer de sua leitura, as definições de diversos sentimentos fizeram a jovem enxergar que aquilo que sentira no dia que queimara a pele, denominava-se dor. Concluira que o ser humano precisava de todos aqueles sentimentos para ser completo e não uma simples máquina que respondia a comandos pré-determinados. Felicidade, carinho, prazer e saudade... só através deles seria possível alcançar uma sociedade perfeita.
Disposta a mudar o sistema e a proporcionar todos os sentimentos e sensações a sua espécie, Eirene dirigiu-se ao computador central. Porém, os guardas já estavam a caminho de interceptá-la e impedir a sua ação.
Ao posicionar-se perante a máquina que controlava todo o sistema, a jovem sentiu uma profunda dor na região peitoral. Um tiro havia atingido-a. Perdera o equilíbrio e automaticamente apertara o botão de auto destruição do computador cental. Ao cair sobre o chão, sentira uma nova sensação, a de paz por poder proporcionar a todos a partir daquele momento as sensações e percepções das quais havia descoberto.